Cybergnosticismo – Os Guinness
Publicado em: 24 de junho de 2020 Por: Rev. Ageu Magalhães
Em países como o meu, onde igrejas (dentre outros locais de culto, incluindo sinagogas e mesquitas) foram fechadas, por razões completamente compreensíveis, há o perigo de enviarmos acidentalmente o sinal errado para o mundo inteiro. Nos últimos trezentos anos, o mundo ocidental tem considerado a ‘religião’ (a própria palavra mudou de significado para acomodar esse novo ponto de vista) como um assunto privado, ‘o que alguém faz no particular’. A fé cristã como um todo foi reduzida, na mentalidade pública, a um movimento ‘particular’ no sentido de que, segundo muitos alegam, não deveria ter lugar algum na vida pública. Assim, ainda posso comprar uma bebida em algum mercado ou loja de esquina; mas não posso me sentar no velho templo da igreja, do outro lado da rua, e participar de um culto de oração. Nesse caso, a adoração se torna invisível; e o fechamento de igrejas parece conspirar com isso. Ao dizer que aboliremos temporariamente o culto corporativo e nos reuniremos com outras pessoas apenas em cultos on-line, realizados ao vivo da sala de estar da casa do ministro, podemos dar a entender que, de fato, não passamos de um grupo de indivíduos com ideais semelhantes em busca de um passatempo arcano particular. Nesse contexto, o problema com a ‘adoração eletrônica’ é que ela acaba se transformando em uma ‘adoração platônica’, isto é, ‘sozinhos com todo o mundo’. Visto que já existem pressões culturais nessa direção, importa-nos reconhecer o perigo.
Felizmente, ao que tudo indica, muitas pessoas que ‘foram para a igreja’ nessa realidade virtual não teriam participado de um culto em algum templo físico; tal desenvolvimento é motivo de regozijo. No entanto, nossas igrejas têm sido há séculos lembretes físicos e audíveis – em ruas movimentadas e em lugares afastados, nos campos e nas cidades – de um estilo de vida que a modernidade ocidental tentou sufocar. Sem dúvida, temos aprendido muitas coisas neste tempo de ‘exílio forçado’ – é exatamente isso que estamos enfrentando, um exílio – mas devemos orar pelo dia em que nossos templos funcionarão, no contexto da nossa sociedade, da forma como foram planejados.
Em outras palavras, estou preocupado com o modo pelo qual a Igreja, deparando-se com uma grande crise, seguiu docilmente o parecer de uma liderança secularizada. Do ministério de Jesus em diante, o sinal da nova criação tem sido a presença restauradora do próprio Jesus e, acima de tudo, sua morte e ressurreição. A realização do culto público ao Deus Triúno – observadas todas as medidas de segurança – foi sempre parte importante do envio desse sinal ao mundo observador. Quando Paulo diz aos filipenses: ‘Alegrem-se sempre no Senhor’, a palavra ‘alegre-se’ não significa apenas ‘sinta-se muito feliz no seu interior’. Significa: ‘saia para a rua e comemore!’ – com o devido distanciamento, claro. Afinal, diversas outras pessoas estão fazendo isso. Nos dias de Paulo, havia muitas procissões, festas de rua e cerimônias religiosas acontecendo em público, de modo que todos podiam ver o que estava acontecendo. Paulo queria que os seguidores de Jesus fizessem a mesma coisa. Na Bíblia, a palavra para ‘alegria’ conota algo que você pode ouvir a uma certa distância. Veja, por exemplo, Neemias 12:43.
Pego-me entre esses dois pontos de vista; e ao que me parece, ambos estão corretos. Entendo perfeitamente que devemos ser responsáveis e escrupulosamente respeitosos. Fico alarmado com relatos de pessoas devotas, mas mal orientadas, que ignoram regulamentos de segurança por acreditarem que, como cristãs, serão automaticamente protegidas contra doenças ou que, como ouvi alguém dizer na televisão, ‘você está seguro dentro da igreja porque o Diabo não pode entrar lá’. (Queria dizer à pessoa que ouvi: ‘Acredite-me, senhora, sou bispo: o Diabo entra e sai de lá, como qualquer outra pessoa’). É o tipo de superstição que traz má reputação à fé cristã. Semelhantemente, debates sobre fechar a porta das igrejas podem facilmente gerar controvérsias paralelas – entre aqueles, por exemplo, para os quais o edifício e todos os seus elementos têm sido parte vital de sua espiritualidade e aqueles aos quais essas coisas são irrelevantes, visto que qualquer pessoa pode adorar a Deus em qualquer lugar. Ambos os lados podem aprender com a crise atual, e fazemos bem em acolher uns aos outros em oração e amor.
Parte da resposta a essa oração, como muitos já perceberam, pode ser o discernimento de que o presente momento é um tempo de exílio. Encontramo-nos ‘junto aos rios da Babilônia’, confusos e sofrendo a perda da nossa vida normal. ‘Como poderíamos cantar as canções do Senhor numa terra estrangeira?’ (Salmos 137:4) se traduz facilmente em: ‘Como posso sentir a alegria de participar da Ceia do Senhor olhando para a tela de um computador?’. Ou então: ‘Como posso celebrar a entronização de Jesus e o derramamento do Espírito Santo sem a companhia dos meus irmãos e irmãs?’
Evidentemente, parte da ideia de Salmos 137 é precisamente o fato de o poema ser, ele próprio, uma ‘canção do Senhor’. Eis a ironia: a escrita de um poema cujo tema é a incapacidade de escrevê-lo. Assim, parte da disciplina do lamento pode ser transformar o próprio lamento em uma canção de tristeza. Talvez seja uma das formas pelas quais somos chamados no momento a sermos pessoas de lamento – lamentando até o fato de não conseguirmos lamentar da forma como normalmente preferiríamos. Devemos explorar essas questões, e as novas disciplinas exigidas de nós, da melhor forma que pudermos. Pode ser que isso também deva ser aceito como parte da vida na Babilônia. Talvez devamos, como nos orientou Jeremias, estabelecer-nos nesse regime e ‘procurar a paz da cidade’ onde estamos [cf. Jr 29:7, ARC]. Todavia, não devemos fingir que é onde queremos estar. Não nos esqueçamos de Jerusalém, nem decidamos permanecer no exílio.
É a esse respeito que as igrejas (e outros grupos como líderes e pensadores judeus) necessitam urgentemente refletir e orar quanto ao que pode e deve ser dito, e sobre como dizê-lo de tal forma que os líderes do mundo ocidental possam ouvir e agir com sabedoria. Com esse fim em mente, abordamos a seção final deste capítulo.”
N. T. Wright, Deus e a Pandemia (RJ: Thomas Nelson, 2020), p. 126-130.
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